Socorro Calhaú

Socorro Calháu

Nasceu em Vassouras – RJ.

Casou-se duas vezes, não teve filhos.

Altura 1,62 m.

Sapato n.º 36.

Ariana, vegetariana, fluminense, amiga para todas as horas.

Professora por precisão (se não fosse já teria morrido!).

Ama todos os animais, todos mesmo: vaca, galinha, peixes, porcos, coelhos, cães, gatos …

Desapegada!!

Conhece todos os seus vizinhos, inclusive os dos outros prédios; fala com todos, dá bom dia, boa tarde, boa noite, no elevador, na calçada, na chuva e na fazenda.

Detesta Shoppings, Churrascarias, Academias e Mc Donalds.

Não gosta de surpresas.

Adora botas, principalmente as de cano curto, ama sandálias rasteirinhas.

Natureba total.

Ama vestidos rodados, longos e floridos; colares e gargantilhas coladinhas no pescoço.

Hippie, estilo: PAZ e AMOR.

Adora: velas, incenso, cristais, mantras, tarô e florais.

Medita, faz Yoga.

Escolhe viver com pouquíssimos pertences, minimalista.

Come de tudo, sem frescura; desde que não tenha sofrimento animal.

Detesta passar roupas.

Sonha em ter uma horta.

Adora cozinhar para os amigos.

Acorda cedo e dorme tarde, numa boa.

Seu livro predileto: Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marques.

Gosta de Suco de Luz do Sol, abacaxi com caju e água de coco.

Adora jaca dura; não gosta de pimentões, principalmente o verde.

Indiferente ao luxo, riqueza, posição social, sucesso.

Encantada com os Direitos Humanos.

Ama Rock and Roll, MPB, músicas de protesto, samba de resistência.

Adora palavras carinhosas, escritas e faladas.

Deseja a morte: do capitalismo, do patriarcado, dos preconceitos, do racismo, do carnivorismo e do punitivismo.

Otimista.

Preocupa-se com o lixo que produz e com a sustentabilidade do planeta.

Refaz seus escritos várias vezes até achar que está bom.

É-Ihe indiferente ter dinheiro.

Escreve seus sonhos à mão, num caderno, quando precisa se concentrar, encontrar seu eixo.

Odeia prisões, físicas e psicológicas.

Tem muito medo de ficar doente.

Não tem o menor medo da morte; mas tem pena …

Espera morrer perto dos 100 anos, mas aceita mais.

Socorro Calháu

Nasceu em Vassouras – RJ.

Casou-se duas vezes, não teve filhos.

Altura 1,62 m.

Sapato n.º 36.

Ariana, vegetariana, fluminense, amiga para todas as horas.

Professora por precisão (se não fosse já teria morrido!).

Ama todos os animais, todos mesmo: vaca, galinha, peixes, porcos, coelhos, cães, gatos …

Desapegada!!

Conhece todos os seus vizinhos, inclusive os dos outros prédios; fala com todos, dá bom dia, boa tarde, boa noite, no elevador, na calçada, na chuva e na fazenda.

Detesta Shoppings, Churrascarias, Academias e Mc Donalds.

Não gosta de surpresas.

Adora botas, principalmente as de cano curto, ama sandálias rasteirinhas.

Natureba total.

Ama vestidos rodados, longos e floridos; colares e gargantilhas coladinhas no pescoço.

Hippie, estilo: PAZ e AMOR.

Adora: velas, incenso, cristais, mantras, tarô e florais.

Medita, faz Yoga.

Escolhe viver com pouquíssimos pertences, minimalista.

Come de tudo, sem frescura; desde que não tenha sofrimento animal.

Detesta passar roupas.

Sonha em ter uma horta.

Adora cozinhar para os amigos.

Acorda cedo e dorme tarde, numa boa.

Seu livro predileto: Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marques.

Gosta de Suco de Luz do Sol, abacaxi com caju e água de coco.

Adora jaca dura; não gosta de pimentões, principalmente o verde.

Indiferente ao luxo, riqueza, posição social, sucesso.

Encantada com os Direitos Humanos.

Ama Rock and Roll, MPB, músicas de protesto, samba de resistência.

Adora palavras carinhosas, escritas e faladas.

Deseja a morte: do capitalismo, do patriarcado, dos preconceitos, do racismo, do carnivorismo e do punitivismo.

Otimista.

Preocupa-se com o lixo que produz e com a sustentabilidade do planeta.

Refaz seus escritos várias vezes até achar que está bom.

É-Ihe indiferente ter dinheiro.

Escreve seus sonhos à mão, num caderno, quando precisa se concentrar, encontrar seu eixo.

Odeia prisões, físicas e psicológicas.

Tem muito medo de ficar doente.

Não tem o menor medo da morte; mas tem pena …

Espera morrer perto dos 100 anos, mas aceita mais.

Querido Paulo, companheiro precioso de tantas lutas, 

há tempos cultivo o desejo de te escrever uma carta, na ilusão de conversarmos, mas o apressado dos dias e dos fazeres urgentes tem tomado muito o meu tempo. É muito possível, também, que eu, inconscientemente, tenha demorado a realizar essa vontade por conta do desejo de te chamar de você, acho o tratamento de senhor, muito frio e distante; mas agora que já passo dos setenta, fico mais à vontade para falar contigo de um lugar menos formal e, claro, com muito mais coisas para te contar, vivências, experiências, andanças e ensinanças.  

Quando você partiu, dois de maio de noventa e sete, fiquei muito triste, órfã, desamparada, um buraco no peito. Já tínhamos nos despedido de Darcy três meses antes. Naquele ano se foi, também, o Betinho, três meses após a sua partida, eu trabalhava com ele. Senti, de novo, o desamparo, a orfandade; a necessidade de me reinventar. Dois anos mais tarde, no mesmo dia e mês lá se foi meu pai, que tinha a sua idade quando partiu, achei tão forte, a mesma data, a mesma idade que você. Para conseguir uma força extra, naqueles tempos de luto, dois meses antes, prevendo o desfecho, adotei um gatinho cinza, lindo, o Zé Bolinha. Fiz isso na esperança de que, assim, teria melhor condição de lidar com o coração dolorido. Sei que você gosta dos bichos e das gentes, por isso te conto do meu Zezinho tão amado. Essa lição de que o amor, a coerência e a fé nos homens (e nos bichos) nos transforma e nos convoca a transformar o mundo, eu que aprendi com você, há muito tempo. Existe muito pouca coisa mais potente e revolucionária do que ser um intelectual, uma intelectual, que não tem medo de amar, de se entregar ao amor; também sou dessas, Paulo. Foi uma decisão muito importante ter um amigo assim, felino, naqueles tempos de tantas perdas e desencantos. Tantas mais tive ao longo dos anos que se seguiram, minha mãe se foi cinco anos mais tarde e, perder mãe, Paulo querido, é uma experiência muito difícil, o chão vai embora junto com ela. Osso!  

Sabe Paulo, a primeira vez que ouvi falar de você estava me formando professora, no curso normal, de uma cidade do interior do Estado do Rio. Vassouras, você conheceu? Mas não sabia muita coisa sobre você, final dos anos sessenta, você era um assunto proibido. Escola religiosa, tempos sombrios de ditadura. A cidade do interior onde nasci, no passado, foi um forte reduto escravagista, no presente, local de pouca reflexão política. Naquela época, se eu tivesse lido a Pedagogia do Oprimido, ou conhecido o sistema de alfabetização que você criou junto com Jomard, Jarbas, Aurenice e Elza, minha passagem pela escola rural teria sido uma experiência muito mais rica e transformadora. Apesar disso, Paulo, a experiência que vivi numa fazenda de gado, numa área rural, desprovida de tudo, me constituiu, me formou. Além disso, permitiu que eu me entendesse como uma educadora popular, lugar do qual nunca saí, mesmo estando na universidade há mais de trinta anos, sem nunca ter deixado o campo dos fazeres políticos da educação, sem arredar os pés das periferias, lugar de onde vim e pertenço até hoje. Mas vivi o que dava conta, na época, aos dezenove anos, e estive nesse fazer da educação rural, dentro de uma fazenda, até os vinte dois anos, levando na bolsa um bando autores não brasileiros, teorias do conhecimento francesas, uma formação com um viés religioso cristão católico, muito reacionário, um tanto racista, numa escola do estado, que funcionava numa senzala desativada, sem água e sem luz e, pasme, sem indignação alguma por parte daquela comunidade rural. E assim, amigo querido, lá fui eu concursada, empossada, cheia de sonhos e pouca informação sobre o que acontecia nos porões da ditadura; sem saber de Darcy, de Brandão, de Aída, de Ruben, de tantos outros companheiros que lutavam e até deram a vida pela democracia. A notícia da sua prisão era coberta de falsas histórias de patriotismo e de um distorcido amor ao Brasil. Tempos mais tarde pude acessar as informações e conhecer melhor a barbárie que acontecia nas masmorras do governo militar, que nos roubava legados importantes, nos tirava pessoas queridas, necessárias, fundamentais para a construção de um país forte, livre, amoroso, democrático. Conversando com Serginho, Carlos, Verinha, José Carlos, e outros amigos seus, tempos depois, fiquei sabendo de maiores detalhes sobre a sua estadia no cárcere, durante setenta dias. Uma história, contada pelos militares, repleta de incoerências, violência e, usando suas palavras, revestida de uma “malvadez desnecessária”, uma vez que se tratava de um duro golpe de Estado, revestido de uma perversidade inominável. A falta de informação, associada a notícias mentirosas, sempre foi a maior arma dos fascistas; concorda comigo Paulo? Hoje eu sei disso e, apesar do mundo ter mudado muito, nessas dezenas de anos, que se passaram, eles ainda se valem das mentiras para ascenderem ao poder e realizarem a destruição da Democracia; covardes que são. Ah, Paulo, companheiro querido, estamos vivendo um período de sequestro dos direitos, tão doloridos quanto os que você viveu entre os anos de sessenta e quatro e oitenta. Autoritarismo revestido de uma falsa democracia, uma religiosidade fanática e deturpada, uma perversa reprise de um filme que já assistimos e que morríamos no final; quanta falta você nos faz nesses tempos atuais, tempos de desesperança e muito desencanto. Mas, tomando emprestado de Luisa Lucinda, “só de sacanagem” e, para desespero dos fascistas, você é o nosso patrono da educação e, eles são obrigados a nos engolir, te amando e nos apegando às suas teorias, pedagogias, amorosidades. 

Mas vamos deixar isso para depois, quero te falar do meu percurso até chegar aos dias de 

hoje. O tempo passou e vivi três anos trabalhando na fazenda de Ubá, em condições adversas e me  entendendo, cada vez mais, como uma professora insurgente, coração desassossegado com as injustiças do mundo. Na verdade, naquela época, eu vivia num mundinho ainda muito pequeno, mas com bastante faro para detectar que nada ia bem. Minha mãe sempre me contou que, desde muito pequena, eu era revoltada com as injustiças. Aos três anos manifestei minha indignação com a permissão que os pais tinham para baterem nos filhos, sendo aqueles, muito maiores em tamanho e força, do que estes. Não, claro que não me lembro disso, ela me contava. Minha próxima experiência foi lecionar no curso noturno da rede pública municipal, da cidade de Vassouras, e me vi pela primeira vez, em contato com alunos adultos, que buscavam a escola tardiamente, em curso supletivo, era assim que se chamava naquela época. Ah, sim, no ano da sua partida, passou a se chamar EJA – educação de jovens e adultos, por conta de ter sido invadida por uma grande quantidade de jovens, que não logravam sucesso no ensino regular. Esse não sucesso era fruto de muitos desmandos e um sucateamento que a educação havia herdado do período da ditadura militar. Paulo, aqui entre nós, que ninguém nos ouça, a escola nunca gostou dos meninos pretos e pobres das periferias, cheios de vida, de energia, de ideias; você sabe disso. Eles sempre se sentiram não pertencentes ao ambiente escolar, aos seus rituais de silêncio, obediência, burocracia e classificação. Uma escola que, praticamente, só considera a literatura branca, os contos de fada europeus, que quase nunca conversou com a ancestralidade das crianças pretas. E esses meninos e meninas dificilmente se reconheciam no que acontecia dentro dos seus muros, grades e regras absurdas. Uma escola que nunca acolheu seus corpos negros, não considera a alegria e a movimentação dessas crianças lindas, criativas, cujos deuses dançam. Eu sou budista, mas te garanto, Paulo, não há revolução maior do que deuses que dançam. Os fascistas morrem de medo deles!! E eu, de amores. 

Olha só Paulo, eu aqui, de novo, me desviando da história que quero te contar, me desculpe, estou tão invadida por um fazer antirracista, que não consigo perder a chance de dizer ou escrever algo que não revele os meus sentimentos relativos a quebrar preconceitos. Voltando ao que quero te contar, nos meus primeiros anos como professora de pessoas adultas, fui tentando compreender as muitas questões que fazem parte da prática formá-los sujeitos da escrita, leitores, “escreviventes’, como nos ensinou mais tarde nossa amada Conceição; já que as dificuldades estão colocadas, quase sempre, de forma velada, desafiadora e com múltiplas faces. Era início dos anos setenta, comecei a perceber que meus estudantes possuíam sonhos e desejos de transformação que de alguma forma entravam em consonância com os meus. Os deles, de aprender a ler, ter saberes que lhes trouxesse alguma mobilidade social, ensinar os filhos nas suas tarefas escolares, fazer poesias, ler as cartas dos seus amores. Eu, que sou filha de metalúrgico, de certa forma, também sonhava com mobilidade, sucesso, felicidade e justiça social.  Desejava que minha docência possibilitasse a eles uma vida mais criativa e feliz, que fossem capazes de traduzir ideias em ações. Eu acreditava que juntos pudéssemos encontrar alternativas para superar as dificuldades pelas quais passávamos, uma vez que éramos pobres e vivíamos o auge daqueles tempos horrorosos. Em regimes totalitários ser pobre é quase um crime, um defeito de caráter; tendo a meritocracia como régua. 

Educando adultos, comecei, então, a viver a contradição de conviver, em sala de aula, com uma superposição de saberes, um que era necessário para “passar de ano” e outro que fazia parte de uma cultura, de histórias de vida e de crenças muito particulares. O segundo pulsava dentro daquelas pessoas e tinha um enorme eco dentro de mim! Comecei a compreender que precisava estudar mais, encontrar respostas, potencializar minha docência; virei uma fábrica de perguntas. Eu, como todas as professoras e professores, daquela época, ainda estava querendo uma receita de sucesso.  Fui para a universidade em busca de aprender uma “fórmula mágica” que pudesse ser aplicada para resolver as questões que se colocavam diante da diversidade do aprender. Em setenta e cinco me formei em Letras, ainda vivendo no interior do estado do rio. Sim, a universidade não respondeu as minhas questões; não havia receitas, como você bem sabe, Paulo; felizmente. 

Em setenta e três havia feito o curso de História da Arte na mesma universidade onde cursei Letras. Este foi o primeiro passo que dei no sentido de eleger a Arte como instrumento de apoio na superação das diversidades pedagógicas, culturais e sociais dos grupos que eu trabalhava, já que as linguagens expressivas têm o poder de desvelar um mundo de desejos, emoções e possibilidades, que se encontra escondido no interior da identidade desvalorizada, pela sociedade, da pessoa não escolarizada. A Arte e a Educação, tornaram-se duas excelentes companheiras de jornada, amigas da vida! E, a escola? A escola não deve educar para a vida, mas entender que ela é a vida, como você nos ensinou com maestria, Paulo. 

Ah, Paulo, deixa eu te contar, me casei em setenta e cinco; mudei para o Rio de Janeiro. Precisei deixar as turmas do estado e do município, onde atuava. Havia naquele momento um processo de fusão entre os dois estados, Guanabara e Rio de Janeiro, que ainda não valia para minha transferência e me obrigava a assumir uma turma fora da cidade. Se por um lado eu me encontrava sem saída para a minha matrícula do estado por outro eu já havia encontrado um lugar de resistência, em espaços alternativos, para continuar a trabalhar com a educação popular e, assim fiz. 

No Rio de Janeiro, Paulo, querido, comecei trabalhando em projetos alternativos que faziam parte de associações de moradores, ongs, igrejas, sindicatos, empresas, canteiros de obras. Vivi experiências na Rocinha, na Construtora Wrobel-Hilf, no morro da Mangueira, Vigário Geral, 

Imbariê, trabalhei com os “Médicos Sem Fronteira”, a CNM (Confederação Nacional dos 4 Metalúrgicos), a SMDS, a CUT (Central Única de Trabalhadores), entre outros locais, fora da escola formal e a cada dia me apaixonava mais pela educação popular; amava o fazer sem grades, sem “não podes”, sem burocracia. Paralelamente, comecei a lecionar Arte, em escolas particulares, afinal, o trabalho com educação popular, historicamente, tem sido devotado ao campo da militância e do voluntariado e, assim sendo, a sobrevivência financeira no interior destas experiências foi, e continua sendo, algo muito complicado, com vínculos frágeis. Fazia a educação formal para sobreviver, mas não sem paixão e, a educação popular, para poder seguir meus sonhos de um mundo melhor, onde todos, absolutamente todos, estivessem incluídos, considerados, felizes. A essa altura eu já estava encantada por sua suas ideias e teorias e cada vez mais inquieta. E foi nesse desassossego que fui para na universidade, dessa vez, estando do outro lado, não mais somente como estudante, mas como professora, pesquisadora. 

Em noventa fiz um curso de pós-graduação lato sensu, Leitura na Escola: Teoria e Prática. Entrei no curso esperando que ele me ajudasse a entender melhor como se dava a formação de adultos leitores e escritores, das periferias, minimizando os custos, já que liam o mundo com muita desenvoltura, mas a leitura da palavra se dava num processo muito árduo; eu diria mesmo, Paulo, desautorizado. Mergulhando em leituras densas e reveladoras percebi que o entendimento das questões que me afligiam estava apenas começando. Neste curso conhecia a doce Lígia Segala, e ela me colocou em contato com Aída e Pedro, Xico e Bia, Brandão e Verinha; educadores populares que eu amava a distância e me identificava com os seus fazeres. Conheci o SAPÉ, o NOVA, o CEDAC. E nesse período fui apresentada a Foucault, a Deluze, a Guatarri, a Florestan, a Velho, Ostrower, a Maturana, a Galeano, dentre tantos outros que me abriram os olhos, a cabeça e, sim, o coração, amorosos que também eram. A cada dia, eu me firmava mais, na crença de que o amor não poderia nunca sair da bagagem. Estes contatos, conversas e entrevistas me conduziram, entre outras coisas, para o ingresso no Mestrado. Fiquei na PUC-Rio por vinte e cinco anos e, me tornei uma professora universitária com uma forte vocação extensionista, pois a educadora popular, que habita em mim, nunca se encaixou muito bem nos estranhos rituais da academia; local muito hostil, infelizmente. Fazia extensão para deixar a educadora popular mais confortável e menos angustiada; mas a vontade, nunca, meu querido Paulo. Nunca fiquei à vontade numa universidade. Aprendi com você a ser capaz de recomeçar sempre, de recusar a me burocratizar mentalmente, de viver a vida como um vir a ser; gratidão por isso, meu querido. 

Em noventa e dois iniciei com um grupo de trabalhadores da construção civil o Projeto Mãos à Obra, alfabetizando operários, dentro dos tapumes de obras. Este trabalho foi para mim a grande lição da educação popular. Ele pretendia ser um contraponto ao Alfabetizar é Construir, do SINDUSCON (sindicato dos patrões da construção civil). Foi a prática da educação no Mãos à Obra que me refez enquanto educadora popular de forma significativa. Estive à frente deste trabalho ao longo de quatro anos, ele existiu até noventa e seis. A essa altura eu já era íntima de sua Pedagogia do Oprimido, que mais tarde passou a ser da Esperança, da Indignação, da Tolerância, da Autonomia. Um grupo de estudantes operários, que integrava o Mãos à Obra, tempos depois, se sindicalizou, se candidatou, venceu as eleições e levou o projeto para dentro do seu sindicato, transformando-o numa proposta de alfabetização, bastante interessante, coordenada por eles próprios. Ah, era possível sim, trabalhar no sentido de se suscitar a autonomia daqueles estudantes trabalhadores. Que tomassem para si esse processo de escolarização, era isso que eu, em silêncio desejei o tempo todo em que estive com eles. Fiquei no céu, meu amigo, não precisavam mais de mim!! Paulo, meu querido, você nem imagina o que é ver os trabalhadores se apropriando de suas vidas, de seus instrumentos políticos, de seu sindicato, dos rumos de suas vidas. Ah, claro, você sabe muito bem, foi você que me ensinou a considerar essa possibilidade e a buscar parceiros nesse fazer: fui, busquei, fiz, gratidão! 

Em meados dos anos noventa assumi a Oficina de Alfabetização do Projeto “Se essa rua fosse minha” recebendo oitenta e cinco meninos e meninas, adolescentes cheios de vida, todos infratores em situação de rua, que possuíam entre dez e dezoito anos de idade.  Todos consumidores de drogas pesadas. Com estes jovens descobri que não era possível realizar uma alfabetização processual, pois os adolescentes, apareciam nas oficinas, uma vez por semana, se muito, por conta de sua realidade na rua, drogas, prisão e privação de tudo, da liberdade, da família, dos sentidos, dos direitos, da vida. Dos mais de oitenta estudantes, somente uma média de vinte apareciam nas aulas por dia e, assim, se revezavam em grupos de vinte em vinte, pois, de uma forma geral, vinte iam visitar a família, vinte não conseguiam se levantar das calçadas para irem à aula por conta das drogas, vinte passavam pela privação de liberdade. E, assim, se revezavam nesse perverso rodízio, existindo nessa realidade complexa, injusta e alucinante, num ritmo frenético. Alfabetizando essas crianças e jovens descobri que este tipo de alfabetização precisava acontecer fora de um processo linear e que cada aula precisava estar fechada num determinado conteúdo, apenas um dia de cada vez, como nos doze passos dos grupos de mútua ajuda, só por hoje. Tarefa ingrata, desafio enorme. Sofri e aprendi muito! Uma experiência que deixa marcas dentro da gente. Marcas vivas, uma dor velada que teima em aparecer sempre que o assunto é juventude, negritude, periferia, injustiça social, violência, tráfico, segurança e educação. Eu nunca mais fui a mesma depois desse trabalho, Paulo, nunca mais! Participei também da construção de uma metodologia para alfabetizar pescadores artesanais, mesma coisa, Paulo, um dia de cada vez, pois eles passavam um único dia da semana em terra, desembarcados; desafio enorme. 

Desde o início dos anos noventa até dois mil e dezesseis formei leitores e escritores, estudantes trabalhadores de diversas profissões, porteiros, domésticas, manicuras, garçons, cozinheiros, operários de obra, muitos deles desempregados com idades variadas, entre dezesseis e noventa anos, em uma escola de EJA, na zona sul da cidade do Rio de Janeiro.  

Faço parte, desde meado dos anos noventa, da equipe do SAPÉ – Serviço de Apoio à Pesquisa em Educação, trabalhando com Aída, sua amiga pernambucana; acredita? Eu fui trabalhar com Aída, que eu admirava de longe, há muitos anos!!!  Como você já sabia, o SAPÉ é uma ONG que trabalha com educação popular, desde o final dos anos oitenta, levando em conta as produções teórico-práticas já produzidas ao longo do tempo, no sentido de que toda esta experiência possa favorecer e melhorar os processos educativos implementados nos meios populares e consolidar parcerias. A experiência dentro do SAPÉ me refez e me reinventou mais uma vez; um fazer resistente, insurgente e muito lindo. Você que conheceu e conviveu com Aída, Rute e toda essa galera de Pernambuco sabe muito bem do que estou falando. Paulo, por falar em gente pernambucana maravilhosa me diz: o que são aquelas fichas de cultura de Brennand? Maravilhosas, não são? Me desviei novamente do assunto… Ter uma mente hipertextual, não é simples, Paulo. Continuando, a essa altura, vivendo assim, fui me (re) construindo, me (re) fazendo, me (re) vendo, me (re) conhecendo, sempre nesse lugar da educação popular, da resistência, da insurgência, da inclusão, da amorosidade. 

E como membra da equipe do SAPÉ começamos o movimento que criou os Fórum EJA do Rio de Janeiro que derivou mais vinte e oito fóruns regionais como decorrência. Com o Fórum EJA aprendi de ouvir o outro, de estar junto, de olhar além; de deixar o ego longe desses fazeres. 

No final dos anos noventa inauguramos, dentro da PUC-Rio, o NEAd – Núcleo de Educação de Adultos, com o objetivo trazer a Educação de Adultos e a Educação Popular para dentro da universidade, num espaço de maior legitimidade. Nesse espaço fizemos alfabetização de adultos em mais de cem comunidades do Rio de Janeiro, além de trabalharmos com formação do sujeito da escrita, nos municípios de mais baixo IDH, situados na região nordeste do Brasil, no coração do sertão, em parceria com o governo federal. Osso, Paulo! Mas muito desafiador! Sabe, querido, me agradei muito dos sertanejos e das sertanejas, que povo mais incrível e apaixonante. Eles leem o céu, Paulo, uma lindezura, que você conhece muito bem. 

Ainda na década de noventa fui professora de língua portuguesa no PVNC – pré-vestibular para negros e carentes, do frei David, unidade da Rocinha, onde atuei por três anos. Os pré-vestibulares comunitários, sociais, que tiveram seu ápice na década de noventa e foram responsáveis pelo ingresso, nas universidades, de muitos jovens pobres, negros, oriundos das 

periferias. Uma iniciativa que sempre me lembra você, quando disse, que a justiça social precisava  ser implantada antes da caridade. Uma experiência que aquece o coração de quem precisa, a todo momento, renovar a esperança na construção de uma sociedade menos injusta e lutar por uma inserção, de outra qualidade, das classes populares nas universidades, para longe do assistencialismo, da meritocracia, da caridade, e dos favores de quem quer que seja; um trabalho que sempre me instiga, me renova e me ensina! 

No início dos anos dois mil coordenei com a Malu, minha companheirinha querida de muitas lutas, o curso de extensão, em convênio com a SME/Projeto de Educação Juvenil da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, uma formação/autoformação, para quatrocentos e vinte professoras e professores de EJA. Além de coordenar também lecionei numa das turmas e mais uma vez me peguei pensando o quanto a justiça social precisa estar no centro destas reflexões se quisermos realmente entender e transformar as injustiças que afetam, direta ou indiretamente, a todos nós, que vivemos nesta cidade. Ainda coordenei e lecionei, Paulo, ao longo dos anos, em mais dois ou três cursos de formação/autoformação de professores da eja, da Prefeitura Municipal da Cidade do Rio de Janeiro e, mais um, com professores do estado; esse último, apenas como professora.  Nesse último, o trabalho foi realizado no auge da existência dos conflitos com o tráfico nas comunidades e fomos literalmente expulsos por eles lá no Morro do Urubu. Depois dessa experiência passei a olhar o tráfico de um outro lugar e sacudi muitos preconceitos para fora de mim. Enxergar a realidade com olhos limpos é abrir um portal de possibilidades. E, nesse refletir, a gente pensa nas prisões brasileiras, nesse mundo de barbárie, punitivismo, prisões provisórias, negligência do Estado. 

Sabe, Paulo, sempre vi a UERJ, que você conheceu muito bem, como um espaço da diversidade, das lutas, da resistência. Comecei a frequentar a UERJ, na década de oitenta, por conta das assembleias de sindicados de professores, greves e outras lutas.  

Jamais pensei, Paulo querido, que um dia estudaria lá e, muito menos, que me tornaria professora dessa universidade tão linda, com tanta potência. Mas, sim, aconteceu. E hoje sou professora dessa maravilhosa universidade popular, democrática, com uma incrível vocação extensionista. E, lá chegando, me deparei com um universitário que era interno do sistema prisional, conheci de perto a realidade em relação ao pouco caso que o Estado e a sociedade, como um todo, devotam ao Direito à Educação, principalmente à Educação Superior, das pessoas em situação de restrição privação de liberdade. E, diante da barbárie, que fui tomando ciência, criei o projeto de pesquisa e extensão, Do cárcere à universidade, para acolher, apoiar e criar uma co-rresponsabilidade da instituição superior de ensino, com cada um desses sujeitos, internos do sistema prisional, que se aventuram a uma nova caminhada, em quaisquer das universidades públicas ou privadas, situadas no Rio de Janeiro. Você sabia, Paulo, que a UERJ leva seu vestibular aos presídios há mais de vinte anos? Lindo, não é? Mas descobri que isso ainda é muito pouco. Esse acesso à seleção, ou ao ENEM, não garante a entrada na universidade e, se conseguem autorização para estudos extramuros, dificilmente conseguem permanência e sucesso nessa empreitada; por uma série de motivos independentes da vontade deles, por culpa do Estado e, principalmente, do judiciário, mas especificamente, da execução penal. E, amigo Paulo, dessa forma, vou seguindo dando aulas na Faculdade de Educação, na área do ensino, trabalhando com formação de leitores e escritores e demais disciplinas da área da linguagem, da alfabetização, do letramento; na extensão, lutando pela adoção de teses abolicionistas no sistema prisional e apoiando o ingresso dos internos nas universidades e no que dermos conta nessa área esquecida pelo Estado; na pesquisa juntando Educação, Letramento e Cárcere. Já vimos, aqui no nosso projeto, quase cinquenta internos se formarem na graduação de cursos diversos, nesses onze anos de existência, e seguimos, conversando com Angela, com bell, com Maturana, com Pennac, com Foucault, com Goffman, com Larrosa, com Ranciere, dentre tantos outros, que refletem sobre a perversidade das prisões, que abominam o cárcere e que pensam a Educação de um lugar revolucionário e transgressor. 

Paulo, companheiro querido, precisamos de muita força nesse momento dolorido e de tantas perdas humanas, por vírus, fome e bala, que estamos passando. Estamos vivendo também perdas de direitos, da democracia, de conquistas importantes indo ralo abaixo. Tempos de muitas dores. É muito triste assistir ao genocídio dos pobres e pretos das periferias. É igualmente sofrido ver que esses mesmos jovens, que não conseguem caber dentro da escola, cabem perfeitamente nas masmorras, assemelhadas às senzalas, que são as prisões brasileiras, com espanto algum da sociedade. 

Paulo querido, tantas coisas ainda para te contar … 

Ah, sim, Zé Bolinha viveu comigo durante vinte anos, Paulo, acredita? E foi se embora há quatro primaveras, me deixando muito triste, mas também enormemente grata por tanto amor, tanta parceria. Foi meu amigo, companheiro, dengo, xodó, o grande amor da minha vida; precisava te contar.  

Estou, nesse momento, tomada de muita emoção por estar falando com você, na ilusão de estarmos conversando. É muito forte e confortante poder te contar tudo isso, repartir algumas das minhas experiências, que foram tão embaladas pelas suas ideias, sonhos e palavras. Mas vou parando por aqui, com medo de te cansar com uma carta tão grande, receio de trazer para você mais notícias ruins.  

Outro dia volto a te escrever. Espero que, dessa vez, mandando boas notícias, dizendo que colocamos os fascistas para correr, usando apenas uma linda estrela da cor das cerejas mais maduras e saborosas. Até lá, seguimos na luta, na resistência, com muita resiliência. 

Receba meu abraço fraterno, muito, muito apertado, repleto de um esperançar sem fim. Com amor e gratidão, Socorro Calháu.